Certas Semelhanças entre utopias - Daniel Alves Pena

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Certas Semelhanças entre utopias

Postado por instrutordanielpena em quarta-feira, 26 de maio de 2010 | 11:04

Miguel Duclós

Trabalho originalmente apresentado para a cadeira de Filosofia Geral III - FFLCH-USP

Embora a palavra Utopia só tenha sido cunhada a partir da junção do advérbio grego ou com o substantivo topos por Thomas More em dezembro de 1516, na ocasião da publicação de seu livro, o tema a que se refere sempre foi rico de construções e alimenta a imaginação humana da antiguidade até hoje. Na Antiguidade, há algumas obras sobre as quais passarei a vista, tentando extrair semelhanças em conjunto com os três grandes clássicos da Renascença. Quem se detém neste estudo logo percebe que a utopia é um tema recorrente tanto no campo da filosofia – na esfera da crítica e teoria política e social – quanto no campo da história, literatura e outros. O subterfúgio para propor a existência de um estado ideal parte de dois motes principais: o primeiro é a consciência do autor acerca de algumas injustiças, iniqüidades e imperfeições de sua própria sociedade, o segundo é o desconhecido ou o estranho, que existe em outro espaço indeterminado – como a Atlântida, a cidade de Utopia, a cidade do Sol, a Nova Atlântida de Bacon – ou em algum tempo diferente, assumindo assim a forma de lenda ou de profecia – como também é o caso de Atlântida ou dos mitos milenaristas cristãos. Os conhecimentos geográficos dos gregos eram limitados, como sabemos, e isso possibilitou imaginar Atlântida além do Grande Oceano, das duas colunas de Hércules do estreito de Gibraltar. Com as grandes navegações na Renascença, o mundo volta a existir em sua vastidão indeterminada de outrora. As façanhas e os relatos dos viajantes, e a descoberta de terras e povos desconhecidos fermentam de novo a imaginação dos europeus, em particular dos nossos três filósofos, More, Bacon e Campanella. Aliás, tais relatos continuaram alimentando as gerações dos escritores nos séculos seguintes, como se observa em parte do Cândido, de Voltaire, que conta a utopia de El Dourado; ou nas Viagens de Gulliver; de Charles Swift, ou no Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens de Rousseau; ou na utopia brasileira A cidade Perdida, de Jerônimo Monteiro. Porém, temos em tais obras e romances que contam relatos de viagens duas vertentes distintas. No gênero utópico, o viajante chega, freqüentemente saído das garras da morte, e é muitíssimo bem recebido pelo estranho povo, não cessando então de admirar a nova forma de organização social. Assim é Nova Atlântida de Bacon, onde o sentimento de inferioridade dos europeus é extremo, e onde sua admiração pela magnitude do povo de Bensalém se mostra em vários pontos. Na outra vertente, temos a figura do colonizador. O colonizador traz consigo as virtudes de sua própria civilização, e impõe aos povos bárbaros sua superioridade e valores. Tal é o caso, por exemplo, de Lord Jim de Joseph Conrad ou de tantos outros, mais próximos da realidade.

Falamos apenas das utopias renascentistas - frutos, em parte, das grandes navegações – e da clássica Atlântida. Mas durante a Idade Média o tema da utopia não deixou de ser palco de férteis elucubrações. O espaço então desejado como ideal era religioso, com a promessa da volta do Cristo, que daria início a um reino de mil anos de paz na Terra, segundo os milenaristas, que se contrapunham ao Apocalipse, cujo relato profetiza o fim do mundo na ocasião da volta de Cristo. Cristo viria para julgar as almas, vencendo definitivamente o anticristo, salvando os justos para junto de Deus e imputando uma segunda morte no lago de enxofre aos ímpios, fornicadores, tiranos, etc. Além desse enfoque religioso, vemos surgir outros relatos mais amenos e humorados, como o do País da Cocanha, que projeta, numa Europa assolada pela fome e pela peste, uma terra de fartura, de saúde, de descanso, e principalmente de alimentos. Como na fábula de João e Maria, a matéria do país da Cocanha era feita de comidas apetitosas e guloseimas. O homem não precisaria trabalhar para garantir seu sustento, se reintegrando assim à natureza e se livrando daquilo que aparece como uma praga divina em diversas religiões: o trabalho. Isto se vê, por exemplo, em Hesíodo, no livro Os trabalhos e os Dias, quando Zeus castiga os homens beneficiados por Prometeu com o trabalho; ou no Gênesis, quando, após comer o fruto da ciência do bem e do mal, o homem é expulso do paraíso e obrigado a garantir seu sustento pelo suor do seu rosto, na produção de vestuários e na busca de alimentos.

Na contemporaneidade a utopia adquire formas incrivelmente complexas em um exército de comentadores, críticos, analistas, transformando-se, além de crítica, em teoria sociológica e objeto de importantes estudos, como os de Manhein, Marcuse e Paul Ricoeur. Mas continua a existir também no campo da imaginação, em obras de ficção literária ou artística, e em preocupações do novo grande movimento de expansão humana: a conquista espacial. As conquistas científicas, as viagens espaciais e a descoberta de uma vastidão sem fim de galáxias e mundos trouxeram de volta a indeterminação do espaço e propiciaram a criação de certas utopias do século XX. Temos as utopias hippies, que chegaram a experimentar "sociedades alternativas" em suas comunidades, ou as utopias negativas, feitas sob o impacto da guerra e sob os efeitos negativos do avanço científico ou de contextos políticos, como 1984 de Orwell ou Admirável Mundo Novo de Huxley. Porém, é particularmente interessante notar uma espécie de utopia que vem se mostrando persistente. Agora os ETs, roubando o papel antigamente destinado a anjos ou outros seres fantásticos, aparecem freqüentemente como figuras sobrenaturais, com poderes sobre-humanos, com um conhecimento científico perfeitamente avançado, ou com um modelo de sociedade ideal. O personagem viajante do livro de Bacon, quando chega na Nova Atlântida e encontra almas tão boas e generosas, pensa por um momento estar numa cidade de anjos, divina. Adotando uma postura feurbachiana, poder-se-ia dizer que os autores de utopias projetam suas esperanças de justiça e virtude que não vêem realizados em sua própria terra, em algum além-mundo, seja ele divino, galáctico ou terreno, e com isso humanizam, ocidentalizam o indeterminado segundo as partes boas e puras de sua civilização ou as conquistas potenciais que um dia virão. Por isso, não é de se admirar que os habitantes das longínquas ilhas de Nova Atlântida em Bacon ou da Cidade do Sol de Campanella tenham elementos estritamente ocidentais, sabendo falar espanhol, latim e até mesmo reconhecendo a divindade messiânica de Jesus. Aliás, o cristianismo é uma religião que aspira a totalidade por sua própria natureza, neste aspecto, é quase uma reforma do judaísmo tradicional, que admitia a palavra de salvação apenas para os hebreus. O cristianismo promete a redenção de toda a humanidade, e de todos os povos, que aceitarem e seguirem como verdadeira a palavra de Jesus. Na própria Utopia de Morus os habitantes da ilha nada conhecem da civilização ocidental, mas muitos se cristianizam ao ouvirem pregada a palavra do Evangelho. Neste sentido, Rafael Hitlodeu e seus comparsas assumem um papel parecido com o dos jesuítas, da CIA de Jesus de padres militares fundada por Ignácio de Loyola para catequizar os índios em meio à selva. Aliás, o Éden, a rigor uma outra forma de utopia, é comparado muitas vezes com as novas terras descobertas por Portugal e Espanha na América, aonde os indígenas andavam nus sem sentirem vergonha, e o calor e a vegetação dos trópicos lembrava uma fartura prometida na Bíblia, mas raramente alcançada no clima de secura e severidade do Oriente Médio e Europa.

A explicação para os habitantes da Cidade do Sol e da Nova Atlântida conhecerem traços da cultura ocidental é que os habitantes das utopias teriam "batedores avançados" que percorreriam o mundo atrás de boas novidades. Os habitantes da Cidade do Sol, chamado "solares", teriam inclusive estátuas e homenagens para proeminentes personagens muito nossos conhecidos, sejam pela ciência, milícia, ou religião, como Aníbal, Arquimedes, Abraão, etc. Os solares são os menos isolados das Utopias, pois além das nações vizinhas, chegaram a travar contato com outros povos mais longínquos, como os hindus. Na Nova Atlântida de Bacon os habitantes clamam para si um conhecimento mais pretensioso: eles dizem que conhecem muitos aspectos da civilização ocidental melhor do que os próprios europeus, pois saberiam remontar mais perfeitamente a tradição ancestral de que os europeus só tinham vestígios. Assim, a Bíblia chega como que por milagre no mar, anunciada por um imenso facho de luz celeste, que leva os barqueiros a procurarem e acharem o baú contendo as sagradas escrituras. Logo depois da morte de Jesus, a Bíblia – tanto o Novo quanto o Velho Testamento – chega completa aos atlantes, e, o mais curioso, inclusive com os livros que ainda estariam por ser escritos! Bacon propõe também uma variação do recorrente mito da inundação. Bacon mistura as enchentes de Platão com o dilúvio universal da Arca de Noé. Para ele, numa época remota, a navegação era muito mais avançada do que em sua época. O mundo inteiro era navegado por diversas frotas de diferentes países ao redor do globo, por fenícios, trácios, atlantes e novos atlantes. Bacon admite a existência dos atlantes, e nesta parte o personagem de sua utopia dialoga diretamente com Platão – assim como os personagens de Campanella e de Morus - mas tira do filósofo a veracidade do destino final da Atlântida. Eles foram castigados pelos céus sim, mas ao invés de um terremoto que fez o mar tragar a Ilha, foram apenas inundados, num imenso dilúvio. A Atlântida é a América de Colombo, e não é de se espantar o estado de primitividade em que viviam os indígenas, pois eles, outrora os poderosos atlantes, haviam perdido todos os seus costumes e cultura durante o dilúvio, voltando à barbárie. Bacon, porém, não parece ter notícia das imensas e complexas civilizações existentes na América, como os povos incas, maias e astecas, que além de terem cidades urbanas com milhares de habitantes, tinham o poder de um Estado e uma organização social e cultural riquíssima, em alguns pontos lembrando os antigos egípcios.

É, aliás, no Egito, que o paralelo com a Atlântida de Platão encontra novas veredas. Bacon, em Nova Atlântida, se mostra como no restante de suas obras, disposto a renovar e reformar o saber clássico, superando-o. Este é o principal motivo do frescor de seus títulos, como Novo Organón, Nova Atlântida, etc. No início do diálogo cosmogônico de Platão, o Timeu e mais detalhadamente no Crítias, está contada a lenda de Atlântida em sua fonte antiga mais divulgada e completa. Plutarco cita que a lenda de Atlântida havia começado a ser contada por Sólon, o célebre legislador ateniense, mas que se constituía uma obra inacabada. Sólon aparece nos diálogos de Platão como tento voltado de uma viagem ao Egito, na primeira cidade divisada pelo Rio Nilo. Um sacerdote egípcio recebe muito bem o ateniense, mas em seguida zomba dos gregos por causa da "meninice" deste povo. Os gregos não teriam as tradições milenares enternecidas pelo tempo do Egito, pois estariam condenados e perder toda a sua cultura escrita a cada dilúvio que ocorresse. Os egípcios seriam protegidos de tal mal por causa do deserto e das cheias do Nilo, mas os gregos perderiam a sua memória antepassada a cada enchente, julgando assim que sua cultura havia começado a apenas algumas centenas de anos. O sacerdote situa então uma civilização grega muito mais antiga, no incrível tempo de dez mil anos antes da época de Sólon, no século V. Tal civilização teria como capital uma cidade no exato lugar onde se encontra Atenas. Foi essa antiga Atenas que liderou o mundo ocidental conhecido contra um poderoso invasor, vindo do oeste, além das Colunas de Hércules, em vastas frotas navais.

É, portanto dentro dessa longa tradição e desses vastos mares da utopia que tentaremos navegar, usando como farol algumas ilhas, ou melhor, obras, capitais para o assunto.

Reconhecidamente, o primeiro grande livro a traçar os contornos de um estado imaginário é a obra prima de Platão, A República. Este livro começa tratando do problema da justiça, no livro I que questiona, sem encontrar desfecho: "O que é a justiça?". Para se contrapor ao relativismo do sofista Trasímaco – para quem, como Cálicles no Górgias, a justiça é o direito do mais forte – e a inexatidão das definições dos outros convivas, Sócrates se dispõe a buscar a origem da justiça, supondo que para encontrá-la seria mais fácil dialogar com os jovens Glauco e Adimanto a fim de imaginar uma cidade justa.

A República de Platão é um diálogo de maturidade, diferente dos primeiros diálogos, ditos aporéticos, aonde uma questão era levantada, mas não se obtinha conclusão. Embora o mencionado livro I obedeça a esse molde ( sendo por isso algumas vezes considerado como um diálogo à parte ), nos outros livros Platão chegará a algumas conclusões bastante decisivas, que definirão a sua teoria tal como ela ficou conhecida na posterioridade, como a teoria das Formas ou o julgamento das almas conforme o Mito de Er. Temos a definição da justiça como "atribuir a cada um o que lhe é devido". A justiça, o mais alto e necessário dos bens, é aplicado de forma prática na cidade platônica com as relações entre o corpo social que a compõe e as três partes distintas da alma e do corpo. Assim a cabeça estaria ligada à razão e sabedoria e aqueles que a detivessem, em menor número, seriam os guardiões. O peito estaria ligado à vontade e coragem, e aqueles que a detivessem seriam os sentinelas, os soldados. Por último, o baixo ventre estaria ligado ao desejo e à temperança, e aqueles que a detivessem seriam os trabalhadores, os artesãos, na última classe social de Platão. O interessante é que o pertencimento do individuo a tais classes estaria ligado sempre às suas aptidões e inclinações naturais. Não haveria direito hereditário, por exemplo, e testes seriam feitos constantemente para restituir, aos que deveriam pertencer a outra classe que não a sua, o devido lugar. Na cidade do Sol de Campanella, também temos uma atribuição das funções dos indivíduos conforme a sua inclinação natural, fazendo-se testes para detectar em que tipo de ofício o indivíduo de revelará mais apto, e portanto, útil. Essa divisão por classes, além de outros aspectos, vai de frontal encontro aos que pretendem apontar uma aproximação de Platão com o comunismo de Marx.

Alguns dentre os guardiões são selecionados para deter o poder político, e isto é uma aristocracia, pois os guardiões são também os mais sábios. Os guardiões, tais como a alegoria da caverna mostra, são os filósofos que ascenderam sua alma dialeticamente até a contemplação das Formas, e voltaram para pagar sua dívida com a polis, tentando orientar os cidadãos de acordo com o Bem. Na cidade do Sol, também temos um governo do mais sábio: o Hoh, chamado por Campanella de O Metafísico. Este seria escolhido já em idade avançada, depois de uma vida inteira de aprendizado e abstenções. O metafísico deteria o poder supremo, mas seria auxiliado por três outros governantes: Por, Sin, e Mor, que seriam responsáveis, respectivamente, pelas decisões militares, científicas e sentimentais. Aliás, o Sol que aparece na cidade de Campanella pode ser associado com a importância dada ao Sol em Platão, como metáfora do Bem, na já mencionada alegoria da caverna. Já na Utopia de Bacon também há essa classe superior, mas de uma forma mais democrática. Cada 30 famílias nas cidades poderia eleger um sifogrante. A cada 10 sifograntes, corresponderia-se um protolarca, e em cada cidade haveria mais ou menos 200 sifograntes. O poder das decisões e as querelas menores eram assim divididos e nem todas as responsabilidades caíam sobre o príncipe Ademos. Na Nova Atlântida de Bacon o governo estaria na mão de vários encarregados e oficiais da casa de Salomão, em diferentes funções. Aqui temos também, portanto, um governo de mais sábios.

Uma das preocupações recorrentes dos que escrevem sobre Utopia é delinear a educação dos jovens, e isso é um tema central da Cidade do Sol de Campanella, onde os jovens receberiam todo tipo de instrução e até os muros da cidade seriam decorados com todo o saber conhecido. Esta preocupação já se encontra em Platão. A educação na República é feita através da música e da ginástica. A música seria qualquer obra inspirada pelas musas - e não somente o som musical. A educação grega de então era feita através da tradição oral que ensinava os poemas homéricos, Ilíada e Odisséia. Platão bane os poetas de sua utopia, pois os poemas, sendo representação do mundo sensível, estariam três pontos afastados da realidade. Platão também condena Homero por atribuir aos deuses e coisas divinas personalidades e comportamentos por demais mundanos e humanos. No tocante à música, somente a dória e a frígia seriam permitidas, sendo banidas as harmonias lídias e jônicas. Em relação à ginástica, tudo seria direcionado de forma a garantir força e austeridade. Na cidade do Sol de Campanella também há uma grande exaltação dos exercícios e da ginástica, e os habitantes da utopia de Morus deveriam, em suas horas de ócio, evitar ficar sentado jogando xadrez, por exemplo, para exercitarem-se em jogos físicos como o pelão.

Na alimentação de Platão, à maneira dos pitagóricos, muitas delícias e excessos seriam proibidos, como o peixe e a carne, os molhos e os doces. Na Nova Atlântida do Bacon comia-se bem, nos jantares que não duravam mais do que uma hora e meia: as carnes eram tratadas cientificamente de forma a não causar mal mesmo a quem fosse fraco de estômago. Os habitantes da ilha de Morus também não se privam de doces. E como na Nova Atlântida, bebem vinho, sucos, sidras e outras bebidas especiais. Bacon não poupa elogio nesse quesito para os habitantes de sua utopia: eles teriam descoberto bebidas agradabilíssimas e muito revigorantes. O almoço é rápido, mas no jantar os utopianos comem doces e frutas. O fato de comerem todos em comum, a disposição e a fala na hora da mesa também é ponto importantíssimo dessas utopias, e será detalhado mais abaixo.

Temos ainda mais dois outros pontos que gostaria de notar na constituição da República de Platão: A abolição de qualquer luxo ou propriedade privada com a adoção de um regime de simplicidade e vida em conjunto e a prática de uma política de matrimônios e eugenia. Isso também se mostra recorrente em outras utopias. Na de More há também a abolição da propriedade privada e os banimentos do ouro e da prata, usados de forma a se tornarem desprezíveis. Isso é citado também na Utopia de Bacon. Em More, o ouro é ensinado como inútil desde a educação das crianças, e a Ilha só o acumula para pagar os vizinhos mercenários. Mas além dessa exortação à humildade e igualdade, existe uma espécie de suntuosidade virtuosa no tocante ao enriquecimento das habitações e das cidades da Ilha. Para More, é pelo fato dos trabalhadores da Inglaterra terem de sustentar uma imensa corja de vagabundos, como nobres, cortesãos e abades ociosos, que a jornada de trabalho se torna demasiado longa. Em Campanella também vemos uma crítica semelhante, quando se exemplifica dizendo que Nápoles tem 75 mil habitantes, mas apenas 15 mil destes dão duro na labuta. More propõe que todos trabalhem igualmente, o que tornaria o trabalho menos cansativo e longo. À agricultura, então, é dada primazia, sendo obrigação de todos, não importando sua profissão, sendo limitada apenas pela compleição física natural dos cidadãos. Este é um dos motivos da fartura de Utopia, que produz mais do que consome, e que permite aos seus cidadãos usarem seu tempo livre para estudar mais coisas ou embelezar a cidade em seus concursos de jardim. Porém, é preciso observar que na ilha de Utopia existem escravos. Os escravos seriam apenas os criminosos condenados ou os estrangeiros capturados na guerra. Há ainda um terceiro tipo: os escravos voluntários, que fugindo da ignominia dos seus países de origem, vem buscar refúgio na Ilha de Utopia, muito xenófoba, e que, à maneira dos atenienses não aceitaria um estrangeiro como cidadão. Esses escravos voluntários recebem respeito dos utopianos e vivem de maneira quase livre. No mais, a escravidão seria um castigo exemplar para os utopianos que, mesmo tendo uma educação esmerada, insistiram em se tornarem criminosos. Mas, os filhos de escravo não são escravos e os utopianos não os compram em outros países. A eles estaria relegado o trabalho considerado indigno a um utopiano, um trabalho não elevado, e que causaria asco aos piedosos utopianos, como o abate de gado para o açougue. Campanella critica especificamente o péssimo hábito da Europa de manter servos e escravos, propondo que, se todos trabalhassem por igual, tal exploração seria totalmente desnecessária.

Quanto à eugenia, os casamentos na República seriam forjados pelos guardiões de forma a parecerem obra do acaso, mas com a preocupação de garantir a melhor reprodução possível, com uma idade mínima e máxima em que seria permitida a reprodução. Além disso, os casais não viveriam juntos e os filhos seriam tomados de seus pais. Na Utopia de Thomas More, a idade mínima é de 18 anos para as mulheres e 22 anos para os homens. Qualquer ato sexual pré-nupcial é duramente castigado, sendo até os pais dos infratores punidos por não terem dado aos filhos a educação adequada. Além disso, o casamento utopiano tem uma peculiaridade interessante: um ritual, onde antes do casamento, os noivos se vêem nus, uma forma de conhecerem-se na intimidade para evitar decepções futuras. Este ritual é expressamente criticado na Nova Atlântida de Bacon, sendo considerado uma falta de delicadeza anular um casamento por causa disso. Porém, Bacon acaba propondo algo semelhante: um local chamado fonte de Adão e Eva, onde os noivos seriam observados separadamente nus por algum amigo em comum. Em Bacon temos também uma grande homenagem para os pais de família que alcançarem a marca de mais de 30 descendentes maiores de 3 anos. Na Cidade do Sol de Campanella, há também esse controle do casamento por parte do estado (19 anos para as mulheres e 21 anos para os homens), porém é permitido ao homem, antes da Idade limite, aliviar suas tensões concupiscentes com alguma matrona, ou grávida, ou estéril. Os que se mantinham celibatos até a idade certa, receberiam grandes honrarias. O controle eugênico da reprodução dos solares se dá de uma forma divertidamente diferente: os casais são unidos tentando-se compensar as deficiências e extremos de cada lado. Dessa forma, um homem robusto deve deitar-se com uma mulher gorda, um senhor de idade deve deitar-se com uma jovem, um gordo deve deitar-se com uma mulher magra. Na Cidade do Sol, porém, a reprodução é um tema seríssimo, que ocupa várias páginas, até mesmo o ato sexual do casal tem data e hora marcada pelo Estado para acontecer. O homem deve, inclusive, conservar-se e preparar-se por três dias para garantir a pureza do sêmen. Os solares que, como já vimos, conheciam as personagens ocidentais, criticam nominalmente o sistema platônico de eugenia neste ponto, pois os guardiões apenas ludibriariam os amantes e largariam a reprodução no fundo ao acaso. O matrimônio de Campanella e de Morus volta a ter o seu caráter sagrado, e há uma crítica do casamento sem amor ou feito sem vista à procriação dos europeus, se juntando assim a mais um item dos hábitos corrompidos criticados pelos utópicos. Na Utopia de Morus, então, a poligamia não é admitida.

Neste controle rígido da natalidade vemos, como no resto, uma brusca perda da individualidade, uma submissão dos interesses do indivíduo aos interesses do Estado. Este também é um tema recorrente nas utopias: há a abolição da propriedade privada, de qualquer luxo desnecessário que adule as vaidades, e a instauração de dormitórios e refeitórios comuns. More critica o monstro pestilento do orgulho que assola a Europa, e Campanella o excessivo amor próprio, egoísta, que deve ser substituído por um amor ao Estado. Tudo é feito nas vistas da sociedade. Na utopia de More, há um severo sistema de vigilância por parte de todos os habitantes, que, como numa cidade interiorana tudo sabem a respeito das vidas dos outros, e que exortam uns aos outros a permanecer na prática da virtude. Os habitantes, para saírem dos limites das cidades, deveriam obter uma autorização especial do príncipe, e sofreriam castigos se fossem apanhados sem ela. Em Bensalém também vemos essa rigidez e severidade. Os náufragos de Bacon se vêem presos, mas não prisioneiros, de um controle externo e que não aparece, mas que enche aquele lugar benfazejo de mistério. Os agentes do Estado utópico de Bacon vão aumentando de hierarquia, o que mostra também uma divisão de classes sociais. A princípio, o mensageiro do Estado recusa a recompensa pela sua boa vontade afirmando que não poderia ser pago duas vezes. Depois, o hebreu lhe conta um resumo dos costumes de Nova Atlântida, sem, contudo lhe revelar detalhes importantes. O viajante de Bacon vê-se então, incrivelmente afortunado porque Bensalém recebe a visita – a primeira em mais de 10 anos-, de um dos sacerdotes da instituição que controla a ilha: A Casa de Salomão. Esta é assim chamada por seu fundador – um antigo e virtuoso rei – em homenagem ao rei Salomão, cuja obra, por sinal, os bensalenses também conhecem em mais detalhes que os próprios hebreus. O sacerdote concorda em encontrar com o narrador de Bacon, que afinal, é o líder de sua tripulação. A partir desse relato, o livro de Bacon muda de rumo. Os mistérios quase místicos que envolviam a cultura e os costumes de Nova Atlântida são desvelados para dar lugar ao grande avanço científico propiciado pela Casa de Salomão. Aqui aparece o tema do domínio técnico da natureza, constante na obra de Bacon, que propõe uma renovação dos saberes, uma ciência positiva, um otimismo no progresso e a proposta de novos métodos de investigação. Esses avanços dos atlantes baconianos se deram, ao longo dos anos, em vários ramos, desde o controle meteorológico da atmosfera, até a medicina e as delicias gastronômicos já citadas. Bacon apresenta as figuras incríveis de ermitões morando em profundas cavernas para realizar experiências segundo os sacerdotes.

Este avanço científico também é mencionado nas outras duas obras da Renascença, mas de forma menos decisiva. Morus faz menção a vários pontos em que o conhecimento dos utopianos seria mais avançado que o dos europeus, como na confecção de um tipo especial de vidro. Os solares, além de absorverem o melhor dos outros povos, ainda tinham um conhecimento exato e mais avançado acerca de questões astrológicas e de outras artes liberais.

No tocante à guerra, a coisa difere um pouco. A república de Platão teria a classe dos sentinelas, mas estes não eram treinados para conquistar, mas sim para defender. Os utopianos tinham horror à guerra, e só entravam em conflito bélico por fortes motivos, como autodefesa, expulsão dos estrangeiros invasores, ou ajuda às nações amigas. Os utopianos, como já observei, acumulavam ouro e prata unicamente com o propósito de subornar as cidades inimigas. A ilha de Bacon é quase que totalmente isolada, recebendo somente visitas esporádicas, e recebendo muito bem os estrangeiros. Porém, Bacon critica outros povos, como os chineses, que não permitiam a entrada de estrangeiros, mas exploravam terras estranhas ao seu bel-prazer. A Cidade do Sol de Campanella é a mais bélica de toda. Além de um governante exclusivamente para assuntos de milícia, ainda temos a seguinte política: os solares provocavam a guerra periodicamente, mesmo em tempos de paz, para evitar o afrouxamento e o destreino de seus soldados. Os melhores guerreiros e sua coragem – uma elevada forma de virtude – seriam louvados, enquanto os covardes sofreriam penas públicas.

Para finalizar, gostaria de sair um pouco do campo da ficção para citar o campo da história, ainda que não uma história científica, mas cercada também de inexatidão, mistério e mito. Plutarco inicia o seu capítulo de Vidas dos Homens Ilustres Comparadas sobre o rei lacedemônio Licurgo afirmando que nada de certo pode ser afirmado sobre sua vida, nem de pouco controverso. É por isso que este capítulo é voltado mais à constituição de Esparta propriamente do que à biografia de Licurgo. Ora, é sabido que a ascendência de Platão estava ligada diretamente a alguns nobres espartanos, como Crítias, que foi um dos 30 tiranos que, a mando de Esparta, governaram aterrorizando Atenas depois de sua derrota na guerra de Peloponeso. Platão, aristocrata, entrou em conflito com a democracia ateniense instaurada no tempo de Péricles. Diversos pontos da constituição Esparta, tal como contada por Plutarco, se fazem sentir na República de Platão, e isso é apontado em muitos comentadores. Porém, mesclado à rudeza espartana, misturam-se elementos culturais e espirituais, derivados de Atenas, tais como a exaltação do Bem e das Formas, a educação esmerada, etc.

A austeridade espartana tornou-se proverbial já entre os gregos e alcançou mesmo helenistas modernos. La Boétie, no Discurso sobre a servidão voluntária cita o episódio de dois lobos irmãos, um alimentado e mimado desde a infância, outro obrigado a caçar e matar sua presa, para exemplificar a importância da educação. Rousseau, apesar de ser defensor da democracia, também em diversas passagens mostra sua preferência por Esparta, por causa da falta de luxo e da austeridade de seus cidadãos. Na Carta a D´Alembert, por exemplo, cita um episódio num teatro grego em que um velho procurava lugar no estádio lotado sendo rechaçado impiedosamente pela massa de jovens. Os embaixadores espartanos, ao verem aquilo indignados, colocaram o velho sob sua honrosa guarda, proteção e companhia, o que o levou a exclamar, diante do silêncio respeitoso da multidão: "Ai de mim, os atenienses sabem o que é virtude, mas são os lacedemônios que a praticam!".

Pois bem, conta-se que Licurgo era o irmão caçula do rei de Esparta, e que quando esse morreu, era o herdeiro natural da coroa. Porém, de última hora, descobriu-se que sua cunhada estava grávida, pertencendo, portanto a coroa ao seu filho. A sua cunhada propôs-lhe o seguinte acordo: ela casaria-se com ele, e abortaria o filho, sendo Licurgo o rei. Licurgo, horrorizado com tal trama, fingiu acreditar, mas no momento do nascimento fez empossar o filho do irmão. Sua cunhada, contrariada, passou a tramar junto com outros, a condenação de Licurgo, acusando-o de querer matar o jovem rei. Licurgo foge então de Esparta para escapar de qualquer suspeita. Esparta, porém, corrompida pelo luxo, abastamento, devassidão, etc, manda chamar de volta, arrependida, o justo Licurgo.

Este então toma algumas medidas principais, que serão base de uma constituição que durará por séculos, já que Licurgo é um personagem muito antigo, quase da mesma época que Homero. Veremos nesta constituição muitos pontos em comum com as constituições das utopias já tratadas. Primeiramente Licurgo bane da cidade o valor do ouro e da prata, transformando-os em matéria sem importância. O dinheiro é feito de um ferro ordinário, que não podia sequer ser fundido em grandes quantidades. Licurgo também cria um Senado, para moderar o poder e mediá-lo entre o povo e a nobreza. Assim, escapa-se da tirania de um rei e da inquietação anárquica do populacho. Há também a abolição da propriedade privada e qualquer riqueza não pode ser exposta em público. Os artesãos não confeccionaram luxos desnecessários, como tapetes e adornos, mas fariam muito bem apenas o básico. A riqueza privada em casa não permitiria a ostentação, causa de muitos males. Há a instauração de acampamentos e refeitórios comuns, e a educação dos mais jovens pelos mais velhos, o exemplo da mesa, e os dísticos exaltando a virtude. Essa medida foi uma das mais controversas, segundo Plutarco. A multidão enfurecida por não poder cometer os excessos da glutonia, teria perseguido Licurgo até que um jovem mais afoito desferisse um golpe num olho de Licurgo, cegando-o. A multidão, então, teria perdido perdão entregando o jovem à justiça do legislador, mas Licurgo não impôs nenhuma espécie de castigo ao jovem, obrigando-o apenas a viver em sua companhia, para aprender o que é uma vida saudável e justa. Plutarco aponta que o excesso de comida torna o corpo indolente e preguiçoso, pois é obrigado a dormir longos tempos ao fazer a digestão. Os jovens espartanos estavam sempre forçando seus corpos ao limite. Quase não tomavam banho, vivendo sebosos e com a mesma túnica simples, descalços. Isso nos lembra os habitantes da Utopia de Morus, que raramente trocavam de roupa, usando sempre uma vestimenta única e durável. Os espartanos dormiam muitas vezes ao relento, e só podia transgredir o regime de refeições em comum ao empreenderem alguma caça individualmente.

A eugenia e o controle da reprodução também está presente, de forma mais brusca até do que nas utopias. Os jovens não podiam reproduzir-se aquém de uma idade limite, mas podiam dar escapadelas estéreis, como em Campanella. Os casamentos eram feitos de forma a garantir que os melhores filhos sairiam dos melhores pais. A poligamia era permitida, e não encarada como adultério. Pelo contrário, um velho senhor casado com uma jovem moçoila podia dividir sua mulher com um rapaz, orgulhoso que ele a enchesse de boa semente. O jovem que desposasse uma mulher teria de ir furtivamente à noite num dormitório aonde ela era mantida no escuro, para lá poder com ela se deitar. A escuridão garantia o clima de mistério e transgressão – ainda que controlada - mantendo assim acesa a chama do desejo, às vezes por meses. Muitas vezes os noivos só conheciam suas mulheres à luz do dia tempos depois. Os filhos eram arrebatados dos pais pelo estado na idade de dez anos. A educação era feita em rígidos moldes militares. Muitas vezes os jovens tinha de roubar para garantir seu alimento, sendo castigados se fossem apanhados, mais pela imperícia na arte de roubar do que pelo roubo em si. As mulheres participavam ativamente dos exercícios físicos, tanto para poderem gerar filhos mais fortes ao Estado quanto para suportar melhor as dores do parto. Os recém-nascidos eram observados, e, se constatada qualquer imperfeição ou fraqueza de índole que poderia frutificar em afrouxamento e doença, eram atirados em precipícios ou deixados em vasos ao sol para morrer. A importância da geração de descendentes era tão grande que muitas vezes superava a hierarquia de idade. A um senhor que não tinha gerado filhos e andava, pedindo passagem, um jovem retrucou que não deveria dar-lhe passagem, pois ele não havia deixado nenhum descendente que procedesse da mesma forma com ele no futuro.

A educação era feita com base quase que somente na ginástica. Em relação às letras, eras-lhe ensinado somente o suficiente para serem respeitosos e temedores dos deuses. As leis de Esparta eram curtas e poucas, para garantir assim sua universalidade. Os espartanos costumavam falar pouco e dizer frases ferinas. Os estrangeiros eram em geral mais ignorados do que desprezados. Os costumes espartanos eram tidos como estranhos pelo resto da Grécia e vive-versa. Apesar de toda a força militar, Plutarco conta que não era aconselhado fazer a guerra mais de uma vez com o mesmo povo, sob pena de que este povo se tornasse tão feroz e acurado na arte da guerra quanto os espartanos.

BIBLIOGRAFIA

* Bacon, Francis. A Nova Atlântida. Coleção Os Pensadores. Abril Cultural. Tradução de José de Andrade
* Campanella, Tommaso. A Cidade do Sol. Tradução de Aristides lobo. Atena Editora. São Paulo
* More, Thomas A Utopia. Tradução de Jefferson Camargo e Marcelo Cipolla. Editora Martins Fontes. São Paulo, 1993.
* Platão. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Editora Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa, Portugal.
* Plutarco. Vida dos Homens Ilustres. Comparação entre gregos e Romanos. Volume 1. Tradução de Paulo Sousa Queiroz. Editora das Américas
* Russel, Bertrand. História da Filosofia Ocidental. Tradução de Brenno Silveira Volume I. Editora Companhia Nacional.

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