por Earle E. Cairns
A Suíça era o território mais livre da Europa ao tempo da Reforma, embora integrasse formalmente o Santo Império Romano. Já em 1291, os cantões livres de Schwyz, Uri e Unterwalden formavam uma união federal em que cada um ia se desenvolver livremente como república autogovernada. Por ocasião da Reforma já eram 13 os cantões da confederação.
Por causa de seu sólido espírito democrático, os mercenários suíços eram requisitados em toda a Europa. Foram eles que encheram os exércitos que o papado organizou para defender seus interesses pela força das armas.
Cada cantão tinha todo o encargo dos negócios locais, o seu governo estava livre para aceitar a forma de religião que quisesse. Por isso, a Reforma na Suíça foi acompanhada de dispositivos legais estabelecidos por governos locais democraticamente eleitos.
As cidades suíças eram também centros de cultura e nelas o humanismo se estabeleceu. Basiléia tinha uma universidade de renome; foi lá que o grande Erasmo editou o Novo Testamento Grego. Por causa disso, a Reforma Suíça teve no humanismo uma de suas maiores fontes.
Três tipos da teologia Reformada se desenvolveram nos territórios suíços. Os cantões do norte, de fala alemã, seguiram Zwínglio. Os do sul, liderados por Genebra, seguiram Calvino. E os radicais da Reforma, conhecidos como anabatistas, formaram uma facção extrema daqueles que, antes, tinham trabalhado com Zwínglio. De Zurich, o movimento anabatista alcançou toda a Suíça, a Alemanha e a Holanda, onde, sob a liderança de Menno Simmons, solidificou-se mais.
I. A Reforma de Zwínglio nos Cantões Alemães do Norte da Suíça
Huldreich Zwínglio (1484-1531) pertence também à primeira geração de reformadores. Com ele, as forças descontentes com Roma se uniram para uma reforma da igreja. Seu pai era fazendeiro e juiz de Wildhaus. Tinha, pois, sua família uma renda que lhe permitia receber uma boa educação para o sacerdócio. Depois de freqüentar a Universidade de Viena, foi em 1502 para a Universidade de Basiléia, onde se formou em Bacharel em Artes, em 1504, vindo a receber o grau de mestre dois anos depois. O humanismo dos professores interessara-lhe. Erasmo era o seu ídolo; as ciências humanas, o seu maior interesse. Pouco lhe interessava a teologia.
Entre 1506 e 1518, serviu como pastor em Einsieden, um centro de peregrinos. Aí começou a se opor a alguns abusos como o sistema romano das indulgências e a imagem negra da Virgem Maria, ridicularizando-os à moda de Erasmo. Quando o Novo Testamento grego de Erasmo veio à luz, em 1516, Zwínglio copiou as cartas de Paulo de um exemplar emprestado até ter o seu. Ao deixar Einsieden, ele era um humanista bíblico. Chamado para pastorear em Zurich, começou seu trabalho no começo de 1519. Nessa época, definiu sua posição contra o engajamento de mercenários suíços no serviço estrangeiro, em razão das influências corruptoras que via exercidas sobre os homens alistados neste serviço; Zurich proibiu a prática em 1521.
Uma epidemia de peste bubônica em 1519 e o contato com as idéias luteranas levaram-no a uma experiência de conversão. Zwinglio levantou a primeira bandeira da Reforma quando declarou que os dízimos pagos pelos fiéis não eram exigência divina, sendo, pois, o seu pagamento uma questão de voluntariedade. Isto abalou as bases financeiras do sistema romano. Por essa época, estranhamente, o reformador se casou às escondidas com uma viúva, Anna Reinhard, em 1522. Só em 1524, legitimou ele publicamente esta união ao se casar publicamente.
Quando os cidadãos invalidaram a prática do jejum quaresmal, sua argumentação foi o ensino de Zwinglio sobre a autoridade exclusiva da Bíblia. Como a liturgia romana começava a se alterar com as modificações introduzidas, as autoridades católicas resolveram promoveria um debate público em que Zwinglio sozinho enfrentaria a todos. Depois disso, então, os líderes civis eleitos pelo povo escolheriam a fé que a cidade e o cantão adotariam. Foi por isso que a Reforma nos cantões do norte da Suíça começou por uma iniciativa oficial.
Para o debate, Zwinglio preparou 67 Artigos, onde insistia na salvação pela fé, na autoridade da Bíblia, na supremacia de Cristo na Igreja e no direito dos sacerdotes ao casamento. Condenavam-se, também, as práticas romanas não aprovadas pela Bíblia. O conselho da cidade decidiu-se pela vitória de Zwinglio e suas idéias ganharam logo condição de legalidade. As taxas de batismo e sepultamento foram abolidas; monges e freiras receberam permissão para se casarem; o uso de imagens e relíquias foi proibido. Em 1525 a Reforma se completou em Zurich com a supressão da missa. O ensino de Zwinglio de que a última palavra pertence à comunidade cristã, que exerceria sua ação com base na autoridade da Bíblia frutificou na reforma suíça: nela, igreja e Estado estavam unidos teocraticamente.
Berna foi conquistada para a Reforma através de um debate semelhante ao de Zurich. Zwinglio participou com suas 10 teses, e, como resultado do debate, o conselheiro da cidade decretou em 1528 a aceitação dos princípios da Reforma. Em 1529, a missa foi abolida em Basiléia pela influência de um amigo íntimo de Zwinglio, de nome Ecolampadio.
A partir de 1522, Zwinglio foi estorvado pelos seguidores que se tornaram conhecidos como anabatistas devido à sua insistência no rebatismo dos convertidos. Em 1525, o conselho municipal proibiu seus encontros e os expulsou da cidade. Felix Manz (1498-1527) foi executado por afogamento.
Zwinglio perdeu também o apoio de Lutero no Colóquio de Marburg, em 1529, depois de não concordarem sobre a natureza da presença de Cristo na Ceia. O zwinglianismo prosseguiu, então, separado do luteranismo.
A aceitação dos princípios zwinglianos por vários cantões tornou necessária alguma forma de organização religiosa, e em 1527 um sínodo das igrejas evangélicas reformadas suíças foi formado. Ao mesmo tempo, a Bíblia foi traduzida para a língua do povo. Até essa época o papa não tinha interferido, temeroso de perder os mercenários suíços, mas os velhos cantões rurais, fiéis ao papa, resolveram acabar com o silêncio de Roma. Organizaram uma União Cristã dos Cantões Católicos e, em 1529, uma guerra aberta irrompeu entre cantões protestantes e católicos. Os dois grupos fizeram uma trégua em Cappel, pela qual a maioria dos cidadãos de cada cantão escolheria a sua religião, garantindo a tolerância aos protestantes dos cantões papais. Quando Zwinglio tentou conquistar Genebra para sua causa, uma nova guerra começou, em 1531. Zwinglio juntou-se aos seus soldados como capelão, morrendo em combate. O resultado da batalha foi cada cantão receber o controle total de seus negócios internos, e Zurique ter entrado em aliança com a Liga Cívica Cristã dos Cantões Reformados. Depois disso, houve uma pequena mudança na situação religiosa na suíça alemã. Heinrich Bullinger foi o sucessor competente e conciliador de Zwinglio. Mais tarde, zwinglianos e calvinistas conjugaram seus esforços nas Igrejas Reformadas da Suíça, através do acordo de Zurique, em 1549.
Zwinglio foi o mais humanista dos reformadores. Para ele, gregos como Sócrates e Platão e romanos como Catão, Sêneca e Cipião estavam no céu. Afora isso, sustentou a autoridade absoluta da Bíblia, nada permitindo em religião o que não fosse autorizado pela Bíblia. Aceitou a predestinação incondicional para a salvação, entendendo que somente aqueles que ouvissem e rejeitassem o Evangelho estavam predestinados à condenação. Zwinglio cria que a fé era a parte mais importante dos sacramentos, a Ceia do Senhor era uma “comemoração” e não uma “repetição” da Expiação, pelo que o crente pela reflexão sobre a morte de Cristo recebe bênção espiritual. Ele concebia o pecado original como uma culpa; as crianças poderiam, portanto, ser salvas por Cristo independentemente de batismo. Seu livro, Verdadeira e Falsa Religião, 1525, expressa o seu ponto de vista bíblico e cristocêntrico.
Foram estas as idéias do homem que colocou os fundamentos da fé reformada na Suíça Alemã. Embora Calvino tenha se tornado o herói da fé reformada, a igreja não pode esquecer o papel de Zwinglio, erudito, democrático e sincero, na libertação da Suíça das garras do papa; embora mais liberal que Lutero, foi tão corajoso quanto o grande reformador.
II. A Reforma Radical, 1525-1580
O fato de que o movimento anabatista esteve inicialmente ligado ao movimento zwingliano no norte da Suíça, justifica tratar os anabatistas num capítulo sobre o surgimento da fé reformada na Suíça. Foi a partir daí que chegou à Morava, Holanda e outras regiões. Os anabatistas sãos os ancestrais espirituais diretos das igrejas menonitas e batistas hoje espalhadas pelo mundo. O movimento apelou aos trabalhadores do campo e da cidade.
Os Anabatistas
Os anabatistas surgiram primeiro na Suíça em função da liberdade que existia nesse país. Nem o feudalismo nem o papado tinham sido capazes de preservar o apoio desta terra de intrépidos soldados mercenários. A insistência de Zwínglio na Bíblia como fundamento da ação dos pregadores encorajou a formação de conceitos baseados na Bíblia.
Conrad Grebel (1498-1526) pode ser tido como o fundador do movimento anabatista suíço. Membro de uma influente família nobre, recebeu uma excelente educação nas universidades de Viena e Paris. Depois de sua conversão, em 1522, trabalhou ao lado de Zwínglio até romperem em 1525. O primitivo ensino de Zwínglio de que o batismo infantil não tinha base bíblica o atraía. Em 1525 o Conselho de Zurique ordenou a Grebel e a Felix Manz, outro culto líder anabatista, que desistissem de promover reuniões de estudos bíblicos. George Blaurock foi batizado por Grebe em 1527 e depois batizou Grebel e vários outros. Ao mesmo tempo, porque muitas pessoas perderiam sua cidadania, Zwínglio desistiu da sua primitiva concepção da falta de fundamento bíblico para o batismo infantil. Os anabatistas mais radicais que se opunham ao controle da religião pelo estado estavam pondo em perigo os seus esforços de convencer as autoridades conservadoras ainda indecisas a passarem para o lado da reforma. De início, Zwínglio usava a técnica do debate para persuadi-los a mudar de idéia, mas quando o método falhou, o conselho adotou medidas drásticas, como multas e exílio. Em 1526, o conselho decidiu punir com a morte por afogamento todos quantos esposassem os princípios anabatistas. O movimento praticamente não existia mais em Zurique em 1531, devido à perseguição que obrigou cristãos humildes a emigrarem para outras regiões. Os Amish da Pensilvânia vieram desse grupo.
Balthasar Hubmaier (1481-1528), um dos primeiros anabatistas alemães, de excelente educação, era doutor em teologia pela Universidade de Ingolstadt, onde foi aluno de John Eck, adversário de Lutero. Seu pastorado em Waldshut, perto da fronteira Suíça, permitiu-lhe um contato com os radicais suíços cujas idéias adotou. Ele e mais 300 seguidores foram batizados por afusão em 1525, pelo que teve que fugir para Zurique a fim de escapar das autoridades austríacas. Daí, foi para a Morava, onde assumiu a liderança de todos que haviam fugido da perseguição de Zwínglio e dos milhares de moravianos convertidos às idéias anabatistas. Por ordem do Imperador, foi queimado numa estaca em 1528, e sua esposa foi afogada no Danúbio pelas autoridades católicas romanas. Durante seu ministério como líder anabatista, ensinou a separação entre Igreja e Estado, a autoridade da Bíblia e o batismo de crentes.
O setor radical do movimento anabatista por causa da sua escatologia contribuiu para decepcionar muitos crentes fiéis nas fileiras dos anabatistas na Alemanha. Os profetas de Zwickau, que causaram problemas a Lutero em 1522 em Wittenberg, embora um pouco equivocadamente, eram em geral associados ao movimento, para desacreditá-lo. A rebelião de Münster em 1535, liderada por alguns anabatistas radicais e quilialistas, serviu para distanciar os anabatistas de Lutero e de seus seguidores.
Bernard Rothmann, um dos cônegos da catedral de Münster, empenhou-se em converter Münster à fé evangélica. Em 1532, o conselho autorizou o uso dos púlpitos para ministros luteranos, mas o Imperador ordenou ao bispo de Münster que expulsasse Rothmann e seus seguidores, os quais estavam se tornando muito radicais, adotando idéias anabatistas de socialismo e propondo a venda das propriedades para ajudar os pobres.
A esta altura, Melchior Hoffman, que viera a Strasbourg a fim de esperar a vinda do milênio em 1533, foi substituído como líder dos anabatistas quiliastas de Strasbourg por Jan Matthyson proclamou-se Enoque e enviou emissários a Münster em 1534. Depois, decidiu que seria Münster em 1534. Depois, decidiu que seria Münster e não Strasbourg a Nova Jerusalém, mudando-se para lá com sua bela esposa Divara, uma ex-freira. Morto numa batalha, sucedeu-o João de Leyden, que se casou com Divara e outras dezesseis esposas sobressalentes. A poligamia foi instituída, para compensar o número superior de mulheres solteiras e para imitar alguns patriarcas do Velho Testamento. A comunhão de bens e a antecipação doentia da vinda do reino dos céus levaram-nos à desordem. O bispo da região, ajudado por uma grande tropa e pela traição de muitos anabatistas, retomou a cidade, executando os seus líderes. O repúdio às idéias de Lutero e Zwínglio, além do fanático incidente de Münster, determinou a condenação e a perseguição ao movimento, tanto por parte dos protestantes como dos católicos romanos.
Um padrão comunitário baseado na Igreja Primitiva em Atos foi desenvolvido por grupos na Alemanha e Morava, guiados inicialmente por Jacob Hutter (em 1536). A perseguição os atingiu, levando-os para a Hungria e a Ucrânia e, depois de 1874, para Dakota do Sul e a província canadense de Manitoba, onde eles praticaram um consumismo agrário numa base voluntária. Eles são conhecidos como Huteritas.
A destruição do movimento anabatista pelos quiliastas de Münster foi evitada pela sadia liderança de Meno Simons (c. 1496-c. 1561) na Holanda. Simons aceitara as idéias anabatistas e abandonara seu sacerdócio na Igreja Romana em 1536. Assumiu, então, a liderança dos “irmãos”, nome que os anabatistas da Holanda adotaram para evitar o estigma do nome “anabatista”. Depois de sua morte, os “irmãos” passaram a ser conhecidos como menonitas, conseguindo, finalmente, sua liberdade religiosa em 1676.
É difícil sistematizar as crenças anabatistas, porque houve muitos grupos anabatistas diferentes em suas doutrinas, como resultado natural da convicção de ser direito do crente interpretar a Bíblia como regra final e infalível de fé e prática; muitos lhe davam uma interpretação literal. Criam que a verdadeira igreja era uma associação dos regenerados e não uma igreja oficial de que participavam até não-salvos. Praticam o batismo de crentes, de início por afusão ou aspersão e, depois, por imersão. Por sua oposição ao batismo infantil, tido como anti-bíblico, e por sua insistência no rebatismo receberam o nome de anabatistas. A maioria acentuava completa separação entre a Igreja e o Estado e não mantinham comunhão com as igrejas estatais. A Confissão de Schleithem de 1527, obra principalmente de Michael Sattler, expressou as principais idéias da maioria dos Anabatistas. Inclinados ao pacifismo, negavam a fazer juramentos nos tribunais e a servir como magistrados. Alguns eram milenaristas em sua escatologia e, em parte, devido a isso praticavam a comunhão de bens.
Os anabatistas exerceram atração especial sobre os artesãos e camponeses, não alcançados pelos outros reformadores. Este fato, relacionado à tendência natural à interpretação literal da Bíblia pelas pessoas iletradas, levou-os a excessos místicos e quiliásticos. Os duros tempos do século XVI fizeram com que muitos pobres aceitassem a consolação que encontravam nas idéias dos anabatistas, que não foram os “bolcheviques da Reforma” nem integravam todos a “esquerda” dos visionários fanáticos. Eram apenas humildes crentes na Bíblia, alguns dos quais enganados por líderes ignorantes, que interpretavam a Bíblia literalmente para proveito próprio. Nem os menonitas nem os batistas se envergonhariam de colocá-los como seus predecessores espirituais. Seu conceito de igrejas livres influenciou os Puritanos Separatistas, Batistas e Quacres.
Os Radicais Místicos ou Espirituais
Muitos seguiram o nobre Kasper Schwnkfeld (1498-1561). Essas pessoas tinham uma orientação mais para a experiência, eram inclinados ao misticismo e criam numa direção interior pelo Espírito Santo. Um pequeno grupo ainda existe na Pensilvânia. Sebastian Franck (1499-c. 1542) tinha idéias similares.
Radicais Socinianos Racionalistas
Os socinianos, precursores modernos Unitarianos, foram outro grupo radical da Reforma. Suas idéias desenvolveram-se na Itália. Lelio Sozzini (Socinus) de Siena (1525-1562) foi atraído ao anti-trinitarianismo pela morte do anti-trinitariano Servetus em Geneva. Fausto Sozzini (1539-1604), seu sobrinho, mudou-se para a Polônia em 1579 e permaneceu lá até a sua morte. O Socinianismo desenvolveu-se rapidamente na Polônia, e Fausto deu o Catecismo Racoviano ao movimento, que foi publicado em 1605. De acordo com os socinianos, Cristo deve ser adorado como um homem que obteve a divindade por sua vida superior. Sua morte foi simplesmente um exemplo de obediência que Deus deseja de seus seguidores. Pecado original, a deidade de Cristo, a Trindade, a predestinação foram negadas. Os Jesuítas capazes de suprimir esse movimento na Polônia, mas as idéias socinianas espalharam-se para a Holanda e Inglaterra, e daí para a América. A moderna igreja Unitariana é um descendente direto dos socinianos da Polônia, que foram chamados unitarianos pela primeira vez na Transilvânia em 1600, aproximadamente.
III. A Reforma Calvinista em Genebra
Os milhões que aceitam a fé reformada e sua fundamentação doutrinária testemunham a importância do sistema teológico fundado por João Calvino (1509-1564), designado geralmente pelo termo “Calvinismo”. O termo “fé reformada” aplica-se ao sistema de teologia desenvolvido a partir do sistema de Calvino. “Presbiterianismo” é a palavra usada para exprimir a forma de organização eclesiástica concebida por Calvino, que fez de Genebra o centro de execução de suas idéias. Calvino pode ser apontado como o líder da Segunda geração de reformadores.
Lutero e Calvino
Calvino faz um interessante contraste com Lutero. Este era de família camponesa, mas o pai de Calvino era um tabelião que fez do filho um membro da classe profissional. A formação universitária de Lutero foi feita de filosofia e teologia; Calvino, porém, recebeu uma formação humanística; por isso, enquanto ele foi organizador por excelência do protestantismo, Lutero foi a sua voz profética. Lutero era fisicamente forte, enquanto Calvino teve de enfrentar problemas de saúde durante todo o seu período de trabalho em Genebra. Lutero amava o lar e a família, ao passo que Calvino preferia o estudo solitário. Lutero, que vivia numa Alemanha monárquica, esperava o apoio dos aristocratas e dos príncipes; Calvino, numa Suíça republicana, interessava-se mais pelo desenvolvimento de uma igreja governada representativamente.
Lutero e Calvino diferiam tanto teológica como pessoalmente. Lutero enfatizava a pregação; Calvino preocupava-se com a formulação de um sistema formal de teologia. Os dois aceitaram a autoridade da Bíblia, só que a ênfase maior de Lutero era sobre a justificação pela fé, e a de Calvino, sobre a soberania de Deus. Lutero interpretava a consubstanciação como a melhor teologia para a Ceia do Senhor; Calvino negava a presença física de Cristo, aceitando apenas a presença espiritual de Cristo pela fé nos corações dos participantes. Lutero só rejeitava o que a Bíblia não aprovava; Calvino rejeitava tudo o que não pudesse ser provado pela Bíblia. Lutero aceitava a predestinação dos eleitos mas se preocupava muito pouco com a eleição para a condenação. Calvino, por sua vez, defendia uma eleição dupla, para a salvação e para a condenação, baseada na vontade de Deus, e rejeitou qualquer concepção da salvação como fruto do mérito do eleito ou da presciência de Deus, como se Deus elegesse para a salvação aqueles que Ele sabia de antemão que creriam.
A Vida de Calvino
A vida de Calvino pode ser dividida, claramente, em dois grandes períodos. Até 1536, um estudante distraído; de 1536 até sua morte em 1564, exceto por um pequeno período de exílio em Estrasburgo, de 1538 a 1541, o grande líder de Genebra. Nascido em Noyon, em Picardy, ao norte da França, seu pai era um respeitado cidadão, a quem era possível reservar de um benefício eclesiástico para a educação de Calvino, a partir dos seis anos de idade. Dois outros benefícios eclesiásticos permitiram a Calvino receber o melhor preparo possível para ingressar na universidade. Estudou por algum tempo na Universidade de Paris, e aí encontrou o humanista Guillaume Cop. Aí conheceu também as idéias protestantes através de seu primo Pierre Olivetan. Encerrando seus estudos humanísticos, seu pai o enviou para a Universidade de Orleans a fim de estudar advocacia, transferindo-se para a Universidade de Bourges, em 1529. A elaboração de um bom comentário sobre o De Clementia, de Sêneca, em 1532, marcou o ápice da influência sobre a sua vida.
Entre a conclusão do comentário e o fim do ano seguinte, Calvino se converteu, adotando as idéias da Reforma e dispensando imediatamente o dinheiro das rendas eclesiásticas. Forçado a abandonar a França, em 1534, por colaborar com Nicholas Cop, reitor da Universidade de Paris, na elaboração de um documento, recheado de Humanismo e de Reforma, seguiu para a Basiléia.
Em Basiléia, terminou sua grande obra, As Institutas da Religião Cristã, na primavera de 1536; tinha ele então 26 anos de idade. O pequeno livro era dirigido a Francisco I, da França, numa tentativa de defender os protestantes da França, que sofriam por sua fé, e pedia a Francisco que aceitasse as idéias da Reforma. A primeira edição era apologética e nela Calvino demonstrava como entendia a fé cristã. A influência do Catecismo, de Lutero, pode ser percebida na freqüência desta primeira edição. Calvino, primeiro discutia os Dez Mandamentos; depois, tomando como base o Credo dos Apóstolos, a Fé; a seguir, a oração, a partir do Pai Nosso; os dois Sacramentos; os perigos da doutrina romana acerca da Ceia do Senhor, e, finalmente, a liberdade cristã do cidadão, que relacionou à liberdade política. A obra passou por várias edições até a edição final em 1559. Esta edição compõe-se de quatro livros e oito capítulos, constituindo-se num amplo texto de teologia.
A Teologia de Calvino
Mesmo correndo o risco de simplificar demais, pode-se resumir a teologia de Calvino como um recurso mnemônico simples, geralmente usado pelos estudantes. As primeiras letras dos principais termos da teologia formam o anagrama TELIP. Coordena sua teologia a idéia da soberania absoluta de Deus. Calvino tinha uma concepção majestosa de Deus, a exemplo de alguns profetas do Antigo Testamento. Ele acentuava a Totalidade da depravação humana, entendendo que o home herdou a culpa do pecado de Adão e nada pode fazer por sua salvação, uma vez que a sua vontade está totalmente corrompida. Calvino ensinava que a salvação é um assunto de Eleição incondicional e independe do mérito humano ou da presciência de Deus; a eleição é fundamentada na soberana vontade de Deus, havendo uma predestinação dupla, para a salvação e para a perdição. Calvino concebia ainda a Limitação da redenção, ao propor que a obra de Cristo na cruz é restrita aos eleitos para a salvação. A doutrina da Irrestibilidade da graça é necessária, então; o eleito é salvo independentemente de sua vontade, pois o Espírito Santo o dirige irresistivelmente para Cristo. A Perseverança ou preservação dos santos é o ponto final do seu sistema; os eleitos, irresistivelmente salvos pela obra do Espírito Santo, jamais se perderão.
Embora a teologia de Calvino tenha contornos muito próximos de Agostinho, ela se deve mais ao estudo da Bíblia do que a Agostinho. Como outros reformadores, ele não foi de Agostinho para a Bíblia e daí para as doutrinas da Reforma, mas da Bíblia para Agostinho, em busca de apoio do príncipe dos Pais da Igreja.
A Vida de Calvino (depois de 1536)
Enquanto Calvino esteve engajado, a Reforma avançou por todos os cantões franceses da Suíça.
Foi Guilherme Farel (1489-1565), ruivo, inquieto, voz tonitruante e carisma de profeta, quem estabeleceu a Reforma em Genebra. De família francesa de classe média e educado em universidades francesas, aceitou cedo, em 1521, a doutrina luterana da justificação pela fé. Protegido por Berna, ele ajudou a propagar as idéias reformadoras. Em 1532, começou a agir em Genebra. Em 1535, venceu uma polêmica com os inimigos da Reforma, o que resultou na adoção formal das idéias dos reformadores pela Assembléia Geral dos Cidadãos, em 1536.
Para estabelecer a Reforma em Genebra, Farel percebeu que precisaria de alguém administrativamente mais capacitado. Em uma de suas viagens, Calvino pernoitou uma vez (1536) em Genebra. Farel foi ao seu encontro e solicitou sua ajuda. Calvino se recusou, pois gostava da vida de estudioso e escritor de teologia; Farel lhe disse que Deus o amaldiçoaria se não ficasse. Impelido pelo medo, como Calvino mesmo mais tarde confessou, resolveu ficar. Ele e Farel trabalharam juntos até serem exilados em 1538. Calvino foi ordenado ministro de ensino de Genebra em 1536.
Em 1537, Calvino e Farel conseguiram a aprovação de um decreto que estabelecia o seguinte: a Ceia do Senhor seria celebrada em ocasiões preestabelecidas; um catecismo de crianças seria preparado; o canto congregacional seria adotado e os membros sob disciplina severa seriam excomungados. Os dois elaboraram um catecismo e uma pequena declaração de fé; como eles se recusavam a dar a Ceia do Senhor a alguns, isso gerou uma controvérsia que acabou levando-os ao exílio em 1538.
Entre 1538 e 1541, Calvino pastoreou refugiados franceses em Strasbourg, onde Tomás Bucer (1491-1551) dirigiu a Reforma e ensinou teologia. Nessa época, casou-se com Idette de Bure, viúva de um pastor anabatista. Seu único filho morreu criança e em 1549 Idette também morreu.
Em 1541, as forças reformadoras novamente obtiveram controle de Genebra e Calvino foi convidado a voltar. Neste mesmo ano ele teve promulgadas as Ordenanças Eclesiásticas, que delineavam as atividades de quatro classes de oficiais na Igreja. Elas estabeleciam uma associação de pastores para dirigir a disciplina, um grupo de mestres para ensinar a doutrina, um grupo de diáconos para administrar a obra de caridade, e, sobre eles, o consistório, composto de seis ministros e doze anciãos, para supervisionar a teologia e a moral da comunidade, com a faculdade de punir, quando necessário, com a excomunhão dos membros renitentes. Para garantir a eficácia do sistema, Calvino estabeleceu outras penalidades mais severas.
Essas penalidades se configuraram severas demais, quando 28 pessoas foram executadas e 76 exiladas em 1546. Por questionar a doutrina da Trindade, Servetus foi executado em 1553. Embora não se justifiquem tais atos, deve-se lembrar que o povo de então cria que estava seguindo a religião do Estado e que a desobediência deveria ser punida com a morte. Essa convicção era compartilhada por protestantes e católicos. Hoje, algumas normas de Calvino seriam consideradas como injustificadas interferências na vida particular.
Em 1564, Calvino morreu; seu frágil organismo não resistiu aos árduos combates pela causa do Evangelho. Teodoro Beza (1519-1605), reitor da Academia de Genebra, tomou a liderança do trabalho em Genebra.
As Contribuições de Calvino
A maior contribuição de Calvino à fé reformada foram as suas Institutas, aceitas como expressão acabada da teologia reformada. Nessa obra, ele pôs os fundamentos de duas ênfases reformadas: a importância da doutrina e a centralidade de Deus na teologia cristã.
Epistológrafo copioso, muitas pessoas da Europa e das ilhas britânicas lhe pediam conselhos. Suas cartas, com outros escritos, integram 57 volumes do Corpus Reformatorum , e existem 2000 de seus sermões.
Calvino também incentivou a educação. Em substituição à Academia, ele criou em Genebra um sistema de educação em três níveis, hoje conhecida como Universidade de Genebra, fundada em 1559. Sua ênfase sobre a educação chegou aos Estados Unidos, quando algum tempo depois, os puritanos, calvinistas, criaram escolas no novo mundo.
Sob sua liderança, Genebra tornou-se uma inspiração e um modelo para os de fé reformada de outros lugares e um refúgio para os perseguidos por sua fé reformada. John Knox por algum tempo se refugiou em Genebra e se curvou ante à eloqüência da pregação de Calvino. Seus muitos comentários sobre os livros da Bíblia são até hoje estudados pelos seguidores de suas idéias. A administração da igreja genebrina tornou-se modelo para as igrejas reformadas.
Calvino também influenciou o avanço da democracia porque aceitou o princípio representativo da direção da Igreja e do Estado. Ele entendia que a Igreja e o Estado foram criados por Deus para o bem do homem, e que, portanto, deviam, ambos, cooperar para o progresso do Cristianismo. Sua ênfase na vocação como chamada divina e a importância que dava à frugalidade e ao trabalho estimularam ao capitalismo.
Acham alguns que a teologia calvinista secciona o nervo do evangelismo e do esforço missionário. Entretanto, um estudo da história da expansão do Evangelho mostrará que aqueles que professam a fé reformada tiveram parte importante nos grandes reavivamentos do passado e nos movimentos missionários modernos. A influência deste talentoso pregador, sóbrio e emagrecido sábio, sobre a educação espiritual da sociedade moderna ultrapassa um muito o seu físico frágil. Só mesmo a graça de Deus operando em sua vida explica adequadamente o trabalho que ele realizou e que até hoje frutifica. Ele foi, sem dúvida, um reformador internacional, cujo trabalho influenciou os Presbiterianos, Reformados e Puritanos.
Fonte: O Cristianismo Através dos Séculos – Uma História da Igreja Cristã, Editora Vida Nova, Capítulo 28.
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